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O desvelar de um sonho


“Sou ignóbil, ignóbil, ignóbil! Acreditei durante considerável tempo em minha vida, neste asqueroso ser intangível, mortificando-me todos os dias”. Foram essas as malditas palavras que pronunciei ao me ver enfraquecido diante da medonha idéia do ser supremo. Solapado de crendices tradicionais, presenciei minha miséria de espírito e fui capaz de ser covarde face as minhas incertezas. Foi um preciso sonho que me desvelou a inutilidade da existência divina e sua cruel realidade distinta. Ao me deitar depois de um dia cansativo e insípido, fechei meus olhos e dei início a minha prece. Numa seqüência habitual parti do pai nosso, e logo estava empreendido numa reverência súplica à madre pura e superiora mãe de todos os pecadores. O sono veio como um desmaio e o inconsciente ditou as normas do meu organismo. Tudo era escuridão numa imensidão assombrosa, vozes se entrecortavam sendo impossível distinguir palavras, frases, sílabas, eram no mais ruídos incompreensíveis, porém ruídos humanos. Recordo muito pouco das minúcias do fato sonhado, e admito que inúmeras outras coisas passaram despercebidas, mas isto são questões próprias dos sonhos, nem sempre recordamos por completo, e as imagens avulsas lampejam a memória com figuras fugidias. Resguardo a lembrança de várias pessoas ao pé de uma cruz na qual um corpo juvenil agonizava de dor. E todas aquelas pessoas extasiavam diante desta imagem. Cada qual cuspindo palavras naquela imensidão negra, onde apenas a cruz e as faces próximas a ela poderiam ser vistas. Recordo que este mesmo corpo era do sexo masculino e havia inúmeras chagas na sua extensão. Era uma imagem, que para muitos pode parecer cruel, aterrorizante, o cúmulo da maldade, da tortura, mas nada disso me incomodava e por incrível que possa parecer, até o momento estava indiferente a tudo. Aquele pobre homenzinho agonizava e seu grito era cada vez mais alto, numa intensidade indescritível causando enorme entusiasmo a todos aqueles que presenciavam o ritual, se é que posso nomear como tal, mas inúmeras são as características que se assemelham a determinada definição, mas deixemos esta problemática de lado e sem mais delongas acerca do que poderia se tratar este incomum acontecimento vi todos aqueles seres se lançarem em direção ao jovem crucificado, e cada qual lutava por uma parte do seu pequenino corpo. Neste momento também senti vontade em arrancar o meu pedaço mas não tive força suficiente para me mover, e angustiado fiquei encravado no mesmo lugar. Os gritos de dor daquela criança chegaram ao fim, e num instante aquela multidão antropofágica sumiu na escuridão, restando apenas eu e a cruz toda manchada de sangue. O cheiro insosso de sangue me tentava a aproximar da cruz, e logo me vi ajoelhado diante desta, aos pouco fui sentindo um prazer incomum tomar conta do meu corpo e logo estava extasiado defronte com aquela imagem. O silêncio se tornou condição, e como que num gozo eterno gemi, e esse meu gemido ressoou na escuridão. Acordei atônito e todo molhado dos pés a cabeça, por conta do suor, mas me sentia pleno, como se acabasse de ter copulado. As imagens ainda eram frescas na minha cabeça, e no mesmo instante me levantei e avistei na parede, no alto da cabeceira da minha cama, um crucifixo velho e empoeirado que herdara há muito tempo da minha progenitora. Peguei-o e olhei aquela imagem mesquinha e estúpida, não lembrava mais do sonho, lancei este objeto no canto do quarto, lavei meu rosto e como um presságio que anuncia o futuro incerto, senti prazer com tudo isso.

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