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Confissões de um solitário vagabundo II


Noite fria e chuvosa nessa cidade estúpida, se já não bastasse o tédio de estar em casa, não há nenhuma bebida, nem mesmo cigarros, nem ao menos um corpo fácil e barato, para um gozo instantâneo seguido de uma repulsa egoísta e necessária. Desejo a violência de uma vida lançada ao risco, intensa, perdida e só minha. Se eu tivesse ao menos uma bebida que me deixasse alto e iludido, é estranho viver de cara nesse mundo. Toda a indiferença preenche meu corpo, certo horror em ser homem, me faz recordar aquele cínico grego “Diógenes de Sínope”, e sua repugnância à civilidade, a corrupta natureza humana que engendra de forma incessante desigualdades. E essa chuva não para, há três dias que ela assola minhas pretensões, premedito e acabo desistindo. Hoje até meus livros, meus únicos e verdadeiros amigos, não me excitam, eu cansei de discursos, de descrições existenciais e de verdades relativas. Mais um dia que se esvai pelo tempo, e propenso estou a desistir de tentar, de buscar ocupar ou velar minha insignificante condição. Eu daria tudo por uma companhia, literalmente tudo, rá rá rá... Certa carência, não apenas de sexo, mais de vida, de existir e esgotar as possibilidades. Lembrei agora a descrição feita por Bukowski da sua linda personagem “Jeannie Nitro” [...] de vez em quando a natureza nos sai com um truque bestial, reúne todos os atributos numa mulher especial, uma mulher inacreditável. Quer dizer, a gente olha e não acredita. Tudo se move em perfeita ondulação, mercúrio, serpente, a gente vê umas cadeiras, um cotovelo, uns peitos, um joelho, e tudo se funde numa unidade gigantesca, um todo inesquecível, com aqueles olhos lindíssimos a sorrir, a boca meio descaída, os lábios imóveis como prontos para estourar numa gargalhada, pela sensação de impotência da gente. E elas sabem se vestir e o cabelo longo incendeia o ar. Tudo demais, porra. Tudo gira em torno do prazer, desse incontentável desejo, dessa aspiração eterna pelo gozo. Tem dias que agente até tenta se submeter ao padrão a fim de realizar, ou melhor, de suprir uma falta, uma carência, aquilo que no momento não lhe tem consigo e deseja por tudo no mundo realizar, conseguir, possuir. Jeannie Nitro tenho você em sonhos eróticos que me fazem delirar... Que noite tão mórbida, nessa cidade ou você acaba um alcoólatra, ou fingi viver estupidamente como todos os outros, ou ainda, consegue uma arma e dá um tiro na cabeça. Prefiro terminar meus últimos dias com uma bela garrafa de Rum, e uma estimável companhia ao meu lado acariciando minha sórdida cabecinha. Acho que no lixo do meu quarto encontrarei algumas bitucas de cigarros, talvez eu consiga reconstruir um suposto cigarro, alguma seda de papel e um pouco de paciência para tal empreitada. Que ânsia absurda, que vício de tamanha impotência, fumar, porém quando se estar sozinho a procura de algum prazer mesmo que imediato e fugaz este hábito nonsense lhe proporciona. Sinceramente, tanto faz, olho para o espelho só vejo depressão e fracasso, me sento diante da tela do meu computador e de forma exaustiva desabafo, me ponho a escrever. Na maioria das vezes ao término da escrita, paro leio e me pergunto: qual o motivo, ou quem sabe, a razão de ser dessa minha ânsia tola em querer transpor em palavras minha atual situação? Amanhã tudo estará diferente, como tudo tem de ser, mutável, instável e perecível. Pelo menos o calor deu uma trégua e a chuva veio lavar toda a sujeira dessa cidade, e a doce vida agora se tornou insípida. Alhures, o vagabundo volta para sua vida moribunda em que só lhe resta enfrentar tudo e a todos.


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